domingo, março 22, 2015

Guia de conceitos feministas

À convite do jornal Correio Brasiliense, eu e minha amiga Juliana Alves de Sousa, escrevemos um guia com os principais conceitos feministas para compor uma matéria a respeito das celebrações do 8 de março e as atuais movimentações dos feminismos.


Quem quiser conferir a matéria, é só entrar no endereço:
http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-e-arte/2015/03/21/interna_diversao_arte,476362/feminismo-ganha-destaque-em-discursos-propagados-por-celebridades.shtml 


quarta-feira, março 11, 2015

House of Cards e as relações de gênero do Século XIX

Claire Underwood não disse com todas as palavras, mas a verdade é que ela está cansada do backlash. 

O Backlash é toda reação antagonista a uma tendência, acontecimento ou evento* e ficou conhecida quando algumas feministas perceberam que isso estava rolando em relação às conquistas das mulheres lá pelos anos 80. Essa reação é materializada por um conjunto de mecanismos criados pelo sistema machista para provar para as mulheres que ser feminista ou lutar pela equidade em relação aos homens vai as tornar infelizes. Ao invés de lutar abertamente contra a conquista das mulheres e ser taxad@ de machista, você reage às conquistas sutilmente por meio de backlash - o que é bem mais eficiente. Por exemplo: Inventam-se padrões de beleza que as deixem super ocupadas tentando atingí-los, ou então gera-se uma ideia de que o feminismo acabou porque agora as mulheres já entraram no mercado de trabalho e portanto não há mais o que conquistar, ou então a ideia de que atingir o poder dos homens é algo antinatural para as mulheres, o que produz vazio e depressão (estereótipo da chefa escrota mal amada, mal comida). Mas eu queria dar destaque especificamente pra um dos mecanismos do backlash: a mulher alfa. 

A mulher alfa é um estereótipo que simboliza a mulher poderosa da atualidade, com a qual o machismo aceitou conviver. Ela basicamente é linda e inteligente. Ela pode ser crítica, desde que não perca a elegância e não altere nada além das barreiras postas. Ela tem até mais anos de estudo que os homens, em média, não apenas trabalha, como também até já ocupa alguns cargos de poder. Ela é tão foda que ela consegue fazer várias coisas ao mesmo tempo: trabalhar, ser mãe, fazer uma pós, ter uma vida sexual ativa, malhar para se manter em forma, manter um casamento bem sucedido, viajar pra Europa com seu próprio dinheiro, e tudo isso estando sempre vestida com as últimas tendências da moda, depilada, maquiada, e feliz. Só que tudo isso tem que estar equilibrado: se carregar muito na maquiagem, parece fútil. Se trabalhar muito, perde o tempo pra família e começa a ser vista como uma mulher fria e calculista. Se engordar um pouco, perde sua feminilidade. Ela é parabenizada constantemente por ter esse "dom"de conseguir fazer tudo isso e tão bem!!! "Eles gostam mais de você do que de mim" disse o personagem Frank Underwood à sua esposa, agora na terceira temporada do seriado americano, que me inspirou a escrever esse texto. 

A mulher alfa, que a personagem Claire Underwood personifica bem, não apenas consegue conviver com o machismo, como também é criação dele. Ela é massa porque se adapta a essas estruturas se esforçando pra tentar ter independência em uns aspectos da sua vida, mas sem questionar outros que ela nem percebe o quanto a aprisionam. É a concessão que um sistema hegemônico enraizado há séculos na nossa cultura fez para que as mulheres tivessem a sensação de que estão finalmente livres. Mas no final das contas as estruturas têm que se manter em sua ordem masculina, e se ameaçadas, sempre haverá como último recurso a violência, em especial a sexual, para mostrar para as pessoas quais os seus lugares nesse sistema. 

Mas vamos ao seriado. Na primeira temporada, já notei várias questões de gênero que mostram como as coisas funcionam ainda hoje no século XXI: a repórter que quer conseguir um furo com o político, faz a jogada de colocar um vestido coladinho pra pegar ele olhando pra bunda dela. Ensinamento clássico do backlash: "Mulheres, sua principal arma é a sedução. Você pode ser uma repórter fodástica, inteligentíssima, mas se precisar, esteja com o corpo igual o da Gisele Bundchen, porque é usando ele que você vai conseguir o que quer" E isso super rola ainda hoje em dia, muitas mulheres que não precisam disso usam, e muitos homens caem. Fico me perguntando pra quê tantas horas de estudo.... Na terceira temporada, a outra repórter quer saber o que o escritor da biografia do presidente tem de informação, e o que ela faz pra conseguir a informação??? Claro, joga o charme. 

Mas voltando pra nossa personagem principal desse texto, Claire. Da primeira a terceira temporada, achei muito interessante a construção que fizeram desse personagem: uma mulher forte, inteligentíssima, estrategista, negociadora, independente, com seu espaço pessoal extremamente respeitado pelo marido, que fez a escolha de não ser mãe, que fez a escolha de um casamento que é uma parceria política sofisticadíssima, que inclusive inclui liberdade sexual fora do relacionamento, entre outras coisas. Enfim, eu acho que nas duas primeiras temporadas os autores conseguiram mostrar um relacionamento peculiar de respeito e parceria mútua e brincaram muito bem em nos deixar com a pulga atrás da orelha: quem manda ali, afinal, é o Frank ou a Claire? Beleza, #sqn. 

Se não bastasse que desde a primeira temporada o backlash estava ali o tempo todo, a terceira temporada nos presenteia com uma super reflexão da relação dos gêneros no Século XIX: Mulher alfa, você pode ser foda, mas quem manda aqui são os homens. "Sem mim você é nada." disse Frank e disse mais: "O que você quer? Não te basta morar na Casa Branca?" A mulher é safa e trabalha pra caralho, dirige projetos de financiamentos internacionais, engole seco a humilhação e o assédio sexual do presidente da Rússia, encara uma sabatina do senado pra se tornar embaixadora da ONU, faz discurso de campanha presidencial com um sorriso e aparência impecáveis, manipula uma galera, encara a imprensa e chefes de Estado pra dizer que basta de homofobia, pra no final o seu respeitoso parceiro político não entender o que ela quer além de ser primeira dama? Você conhece aquele ditado: "por trás de um grande homem, tem sempre uma grande mulher"? Esse é o enredo sugerido no início do House of Cards, esse é um modelo de relação de que muit@s se orgulham. 

Só que não. Estamos cansadas disso. Estamos cansadas de um falso poder alfa, de falsas parcerias, de meio respeito, de concessões, de cargos de média gerência enchendo estatísticas orgulhosas de equidade de gênero, de Revista Cláudia dizendo como me comportar, de anorexia, de Rivotril pra minha infelicidade, de todo mundo opinando no meu corpo. "Chega dessa merda!!" disse Claire Underwood (em atitude, não em palavras, porque ela ainda tem a obrigação de ser uma lady). Super recomendo assistir ao seriado e refletir um pouco sobre isso. 

Celebramos o 8 de março há alguns dias e cansei de receber recadinhos parabenizando as mulheres por tudo que conquistaram, por serem multitarefeiras, super alfa. Afff, rosas e flores do backlash. É verdade que conquistamos algumas coisas, mas vamos parar de mentir que tá tudo bem agora, porque não tá. É verdade que o Brasil já elegeu uma presidenta, mas não tenho dúvidas que foi pela continuidade do governo anterior, e não por uma mulher ser a preferência do povo em sua direção do Executivo. Do Executivo, repito, porque no legislativo e no judiciário, as mulheres ainda são menos de 15%. Nunca vi presidentes homens em reportagens tendo o tamanho de sua barriga avaliado. As mulheres negras trabalham desde sempre, seguram a onda de todo mundo nessa bodega e são abandonadas nas rede de saúdes, humilhadas pelos padrões de beleza hegemônicos. Temos a melhor jogadora de futebol do mundo e os times de futebol feminino não recebem porra nenhuma de patrocínio. Vai meia duzia de gat@s pingados assistir aos seus jogos e ainda muit@s pra fazer piadinha chamando a atleta de gostosa. O Brasil é sétimo país que mais mata mulher dentro de suas próprias casas. A gente é parabenizada no 8 de março por sermos alfa fodanas, mas temos medo de andar na rua sozinha e sermos estupradas. A gente vive culpada porque tem que escolher entre o trabalho e a família, enquanto os homens podem ter os dois sem ser julgados pelas suas escolhas (resguardadas as proporções, é claro). É culpa porque comeu pizza e engordou um pouco, porque esqueceu de depilar a perna. Damos uma discutida mais forte numa reunião de trabalho, e as piadinhas de TPM e histeria feminina começam. Em pleno 2015, uma atriz teve que fazer o papel de chata no Oscar pra dizer que os salários em Hollywood são desiguais. "Pergunte menos sobre o vestido e mais da atriz que está usando o vestido" foi uma campanha realizada nesse Oscar. A gente vive cansada e tem que lembrar da camisinha do parceiro porque se eu engravidar e fizer aborto, eu que é vou presa, não ele. A gente apanha de pai, do irmão, do marido, do filho, do vizinho. Esses dias ouvi um cara questionar que não entende porque mulher pode se aposentar com menos anos de contribuição do que o homem. Resposta, amiguinho: Só porque eu trabalho desde os 12 anos de idade lavando louça enquanto você jogava video game, trocando frauda dos meus irmãos, lavando cueca cagada de moleque adolescente. Só que o meu trabalho doméstico e de cuidado com a família não tem valor pra você, né? 

A gente tá adoecida com essa história de ser mulher alfa. Porque essa mulher não existe na vida real, é impossível ter um pouco de liberdade e agradar o patriarcado. Não temos tempo hábil pra ser bonitas, inteligentes e felizes. A equação do backlash não bate porque a nossa felicidade não pode ser moldada por estruturas que nos desvalorizam e nos humilham o tempo todo. Que bom que várias mulheres e homens estão questionando essa ordem machista e encarando mudanças. Demorou!! Pois de outra forma, não há Rivotril que mantenha as Claire Underwood sorrindo atrás de um homem. 

* Tirei essa definição do texto de Larissa Nunes do Clit Zine.